46. Sabe-se no mundo cristão que Deus é infinito e eterno, pois na Doutrina Atanasiana sobre a Trindade se diz que Deus Pai é infinito, eterno e onipotente, do mesmo modo que Deus Filho e Deus Espírito Santo, e, todavia, não são três infinitos, eternos e onipotentes, mas um só. Daí se segue que, como Deus é infinito e eterno, não se pode atribuir outra coisa a Deus senão o que é infinito e eterno. Mas o que é o infinito e eterno não pode ser compreendido pelo que é finito, embora possa de algum modo ser compreendido. Não pode ser compreendido porque o finito não é capaz de perceber o infinito; e pode ser compreendido porque existem ideias abstratas pelas quais as coisas possam ser vistas, embora não como elas são. Há ideias sobre o infinito, por exemplo, que Deus, por ser infinito, ou o Divino, por ser infinito, é o próprio Ser, que é a Essência e a Substância mesmas; que Ele é o Amor mesmo e a Sabedoria mesma ou que Ele é o Bem mesmo e Vero mesmo, assim, o Eu mesmo (Ipsum) e, até, o Homem mesmo. Além disso, também se diz que o Infinito é o Todo e que a Infinita Sabedoria é a onisciência e a Infinita Potência é a onipotência.
[2] Entretanto, essas coisas caem em pensamentos obscuros e, do incompreensível, caem talvez no negativo, se da ideia não se abstraírem as coisas que o pensamento tira da natureza, principalmente dos dois próprios da natureza, que são o espaço e o tempo, pois estes não podem deixar de limitar as ideias e fazer com que as ideias abstratas sejam como nada. Todavia, se esses próprios puderem ser abstraídos no homem, como acontece no anjo, então o infinito pode ser compreendido pelas coisas há pouco citadas acima. Assim, também, que o homem é alguma coisa, porque foi criado pelo Deus Infinito que é Tudo; depois que o homem é uma substância finita, porque foi criado pelo Deus Infinito que é a Substância mesma; e que o homem é sabedoria, porque foi criado pelo Deus Infinito que é a Sabedoria mesma, e assim por diante. Pois, se Deus Infinito não fosse o Todo, a Substância mesma e a Sabedoria mesma, o homem não seria coisa alguma, ou seria nada ou somente uma ideia de que é algo, segundo os visionários que se chamam idealistas.
[3] Pelas coisas demonstradas no tratado Divino Amor e Divina Sabedoria vê-se que a Divina Essência é o Amor e a Sabedoria (Divino Amor e Divina Sabedoria 28-39); que o Divino Amor e a Divina Sabedoria são a Substância mesma e a Forma mesma, e, assim, o Eu mesmo e Único (Divino Amor e Divina Sabedoria 40-46); e que Deus criou o universo e todas as suas coisas de Si Mesmo e não do nada (Divino Amor e Divina Sabedoria 282-284). Segue-se daí que tudo o que foi criado, principalmente o homem e, nele, o amor e a sabedoria, são alguma coisa e não uma ideia somente de que são alguma coisa. Pois se Deus não fosse infinito, não haveria o finito; também, se o Infinito não fosse o todo, não haveria coisa alguma; e se Deus não tivesse de Si Mesmo criado todas as coisas, não existiria coisa alguma, assim, nada. numa palavra, nós somos porque Deus é.